Quando a sua vizinha receita Rivotril


Dona Maria, como fazia diariamente, logo após o café da manhã, saiu para varrer o quintal de sua casa. Entre uma e outra vassourada, reparou que sua vizinha, Dona Clara, passava em frente a sua casa. Grandes amigas, uma cumprimenta a outra:

_ Bom dia Maria, tudo bem?
_ Bom dia Clara, comigo tá tudo bem, só ando preocupada com a minha filha, a Claudinha.

Dona Clara, curiosa pergunta: 
_ Aconteceu alguma coisa com ela?

Dona Maria imediatamente responde:
_ É que ela anda muito estressada, cansada do trabalho e da faculdade. Anda sempre nervosa e tem tido muita insônia. Não sei mais o que fazer com essa menina.

Dona Clara levanta uma sobrancelha e solta um:
_ aaaaaaaahhhhhhhhhhhh. Meu filho também já passou por isso, sabe o que resolveu, Maria?
_ O quê?
_ Tem um remédio chamado Rivotril. Você toma umas gotinhas e fica mais tranquila. Pra dormir então é uma maravilha. É baratinho!

O diálogo acima retrata um comportamento comum na vida de muitos brasileiros. A prescrição de medicamentos por quem não é especialista. Sim, o Rivotril é pop e está na boca do povo. Até mesmo você que nunca teve problemas de ansiedade conhece o nome desse remédio.

Geralmente prescrito por médicos para pacientes que estão em crise de ansiedade, o Rivotril, principalmente aqui no Brasil, é comumente utilizado como “solução” para os descompassos diários na vida de um ser humano comum: pressão no trabalho e na faculdade, prazos, problemas de relacionamento, insônia esporádicas. O uso dessa medicação em momentos de pequenos desconfortos diários tem sido influenciado, inclusive, por alguns médicos. Ou seja, parece haver um consenso de que a ansiedade deve e pode ser evitada a todo custo, não importando a intensidade da mesma. Se reclamar que a vida está tensa e agitada ganha Rivotril de presente.

Todo mundo está usando Rivotril. A tia, o avô, o primo, a amiga, a vizinha. Tinha até comunidade no Orkut: “Meu amigo Rivotril”. No Facebook você encontra páginas como “Rivotril da Depressão” e “Miss Rivotril”. Virou piada. Virou chacota. O Brasil, sem sombra de dúvidas, é o maior consumidor de Clonazepam (Rivotril) do mundo. Quando falamos do consumo desse benzodiazepínico aqui no Brasil, o Rivotril quase sempre, está entre os medicamentos mais consumidos no país, com algumas variações de posição. 



Você pode estar se perguntando agora: mas esse remédio não é tarja preta? Como tanta gente usa então? Sim, o Rivotril é tarja preta e por isso mesmo eu reitero que há também uma grande responsabilidade por parte de quem o prescreve. Temos muito ansiosos no Brasil? Sim, temos, e tudo indica que isso só vem aumentando ano após ano. A questão é que nem toda ansiedade precisa ser controlada (ou maquiada) com um ansiolítico. A medicação trata apenas os sintomas, e não a causa. Tudo indica que, para algumas pessoas, agradar o paciente ofertando-lhe um calmante seja mais interessante do que resolver o problema de fato, e o pior, às vezes esse problema é algo tão banal que uma mudança de comportamento resolveria tudo.


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É claro que preciso mencionar a grande quantidade de pessoas que conseguem o remédio sem a receita médica. São utilizados os mais diversos métodos para se conseguir isso, desde usar nomes de outros pacientes até comprar pela internet no “mercado negro”. Além desse tipo de conduta, é importante ressaltar que no Brasil poucas pessoas vão ao psiquiatra, então muitas das prescrições de Rivotril, vêm de outras especialidades como, por exemplo, ginecologistas que querem tratar os sintomas da TPM. Maurício Lima, diretor-médico da Roche, laboratório responsável pelo Rivotril assevera, também, o seguinte: "Grande parte dos brasileiros tem dificuldade de acesso a psiquiatras, e isso está relacionado à prescrição do Rivotril por médicos não especialistas".

Mas que mágica é essa que esse bendito do Rivotril faz nas pessoas?

Vou esquematizar de uma forma bem simples:

  1. O seu sistema nervoso central possui neurotransmissores estimulantes e neurotransmissores desestimulantes (ou depressores). É o equilíbrio entre esses dois tipos de neurotransmissores que nos permite ter alguma estabilidade psicológica;
  2. Você vai trabalhar;
  3. O trabalho apresenta grande número de agentes estressores: chefe chato, cobranças, barulho, rivalidades, pressão;
  4. Algumas áreas do seu cérebro começam a trabalhar mais;
  5. Surge a ansiedade, que seria, de uma forma bem simples, a tentativa de o seu cérebro resolver algum evento futuro que pode trazer perigo (no nosso caso, estresse, incomodo). Se não fizer o trabalho direito o chefe chato vai reclamar, se não trabalhar não terá dinheiro para pagar as contas, se não for eficaz não vai conseguir uma promoção, quando terminar o trabalho vai ter que pegar aquele trânsito enorme;
  6. Mesmo tendo que focar no trabalho, seu cérebro não consegue dar prioridade ao que é importante no momento, pois está estimulado a encontrar e resolver "problemas" e todas essas preocupaçõezinhas ficam borbulhando na sua cabeça;
  7. Você começa a ficar irritado, nervoso, “cansado”. Mais e mais ansioso. Não consegue relaxar mesmo estando sentado, deitado, dormindo;
  8. Você toma o Rivotril;
  9. A medicação começa a potencializar a ação do neurotransmissor GABA (ácido gama-aminobutírico), um dos principais neurotransmissores depressores;
  10. Esse neurotransmissor basicamente vai falando para todos os seus neurônios: galera, vamos relaxar um pouco! Tá na hora de ficar de boa!
  11. O estado de tensão começa a diminuir, pois o GABA começa a agir com sua ação inibitória sobre os neurônios e assim surge aumento da sonolência, redução da excitação, relaxamento e por aí vai;
  12. Surge um efeito sedativo e relaxante. Você começa a “pensar menos” pois passa a responder menos aos estímulos externos: chefe chato, pressão e etc....


É essa sensação de paz (paz zumbi, mas é paz) que muitas pessoas buscam no Rivotril.



Perceba que não estou dizendo que o Rivotril é em si um vilão. Claro que não! Usado da forma correta nos casos e momentos adequados ele é um "santo remédio". Você precisa entender que o Rivotril não faz você produzir mais, ele apenas deixa você mais calmo. É um calmante, e trata sintomas apenas. Quando os sintomas de uma alta ansiedade: suor, calafrios, insônia, taquicardia, estão insuportáveis, então sim, o medicamento se torna valioso. Não cultuo a ideia de que não devemos tomar medicamentos, muito menos a ideia de que sempre devemos tomar medicamentos. É para isso que existem os especialistas, para avaliar caso a caso, o que ao meu ver, não tem sido feito de forma prudente por algumas pessoas.

Outros 2 grandes fatores que aumentam a popularidade do Rivotril são a facilidade de adaptação do medicamento pelo paciente em comparação a outros da mesma família de benzodiazepínicos e também o preço. O Rivotril é bem mais barato do que outros seus concorrentes.

Ok, Mion, mas por que todo esse alarde com essa medicação?

Um dos motivos do meu alarde e que muita gente desconsidera é a possibilidade do uso prolongado de medicamentos benzodiazepínicos aumentarem a probabilidade de demência em até 51%. Segundo uma pesquisa realizada por estudiosos canadenses e franceses, que contou com a participação de 8.980 pessoas com mais de 66 anos, usar calmantes à base de benzodiazepínicos (conhecidos pelos nomes comerciais como Rivotril, Valium, Lexotan e Lorax) por mais de 3 meses pode aumentar a incidência de Alzheimer. Não se descobriu ainda ao certo o motivo dessa relação 

Para quem quiser ler a pesquisa original: Benzodiazepine use and risk of Alzheimer’s disease: case-control study​

Além do risco acima mencionado, podemos, por óbvio, apontar o perigo de um calmante acalmar quem não deveria estar tãoooo calmo: pilotos de avião, motoristas, cirurgiões. É por isso que esse tipo de medicação deve ser controlada e até evitada para certos tipos de profissionais enquanto estão trabalhando.

Mas para mim, o risco maior que muita gente desconsidera é o da dependência. Todo benzodiazepínico pode causar dois tipos de dependência, a química e a psicológica. O uso continuado pode deixar o cérebro dependente daquela da substância para que consiga funcionar corretamente. Ele literalmente vicia, se apega à determinado agente químico e só exerce sua função depois que a substância for absorvida. É a dependência química. A dependência psicológica acontece quando mesmo depois de parar a medicação, a pessoa deixa sempre uma caixa guardada por precaução, e quando tem algum momento de maior tensão, acaba voltando a tomar, ou seja, ela nunca consegue parar de fato.

Só para você ter uma ideia, segundo o diretor do Centro de Assistência Toxicológica do Hospital das Clínicas de São Paulo, Anthony Wong, por volta de 80% das pessoas que usam benzodiazepínicos ficam dependentes em 2 ou 3 meses de uso. E a grande maioria acaba tendo crise de abstinência se o remédio for tirado de uma hora para outra. Nos casos mais graves de abstinência, a pessoa pode começar a ver, sentir e ouvir coisas irreais. Pode também apresentar delírios, agitação, depressão, apatia, entre outros sintomas. 

E se eu estiver dependente de Rivotril? O que posso fazer? 

Você precisa aprender a lidar com a ansiedade e enfrentar todos os “problemas” que a medicação escondeu. Tudo aquilo que fez você buscar a medicação precisa ser trabalhado, pois o Rivotril apenas criou fantasmas à espera de uma libertação. A terapia é extremamente importante para ajudar você a se livrar de tudo isso. Saiba que tem solução. É possível melhorar e muito, mesmo que você ainda tenha que fazer uso de alguma medicação. Quanto mais rápido você entender a sua ansiedade, mais qualidade de vida terá. 


AVISOS IMPORTANTES:
  1. Não tome qualquer medicação sem orientação médica;
  2. Se você está tomando Rivotril e quer parar, faça a descontinuação do medicamento com a supervisão do seu médico;
  3. Se você já parou de tomar a medicação por contra própria e está sofrendo com os sintomas da abstinência, procure um médico e relate o caso;
  4. É muito importante que, com ou sem o uso de medicação, você inicie um processo terapêutico para trabalhar seu comportamento e possíveis causas desencadeadoras de um estado ansioso mais severo.
  5. Não caia na ilusão de que porque fulano tomou Rivotril por meses e não aconteceu nada que será igual com você. Organismos reagem de forma diferente a cada componente químico e psicológico;
  6. Não desista jamais! Há solução.
P.S.: Leia meus outros artigos e me adicione nas redes sociais.

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